quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A normalização da pobreza

No outro dia fui a um supermercado e quando estava na fila para pagar, vi que atrás de mim estava um rapaz que trabalha numa oficina onde costumo ir. Reparei que trazia com ele a filha. Pensei: "o rapaz que costumo ver manchado de óleo tem, pelo menos, uma filha e pode ter mais. Evidentemente ele come, tal como os seus filhos, a sua mulher, se existir e, por isso faz compras." e continuei..."ele não deve ganhar muito na oficina, provavelmente salário mínimo... como pode alimentar a família com um salário mínimo? ou talvez dois se a mulher estiver empregada..." e fiquei a olhar, confesso.

A resposta foi fulgurante quando o rapaz encheu o tabuleiro rolante com pacotes de arroz e latas de atum.
Arroz. Atum enlatado. Nada mais.

Há uns anos atrás, antes da nova vaga da crise sistémica do capitalismo, as dificuldades existiam, sem dúvida. O capitalismo nunca teve como objectivo o desenvolvimento humano, mas em alguns momentos, esse desenvolvimento foi um sub-produto do capitalismo. Não pode, no entanto, tal desenvolvimento continuar, pelo simples facto de que o capitalismo aproxima-se aceleradamente dos seus limites materiais e, esperemos, dos seus limites históricos. 

Que a um idoso fosse roubada uma parte de uma reforma.
Que a um trabalhador fossem roubados dois salários.
Que aos jovens fosse negado o direito a estudar e a aprender.
Que aos portugueses fosse negado o direito à Cultura.
Que gente morresse às portas dos hospitais porque não tem dinheiro.
Que as crianças tenham fome, cada vez mais fome e cada vez mais crianças com fome.
Que as filas do desemprego se encham de novos e velhos, de cabeça baixa ante a tristeza da inutilidade a que os "mercados" os votaram.
Que famílias inteiras vivam da mendicância.
Que nos orgulhemos de ser um povo que dá muito ao banco alimentar.
Que as fábricas fechem enquanto ficamos sem trabalho.
Que os jovens partam tristes.
Que os pais chorem a partida dos filhos tristes.
Que ter alimento seja "sorte" e ter "saúde" seja graças a deus.
Que gente que trabalha esteja condenada a comer arroz com atum enlatado, por vezes talvez nem isso.

Com tudo isso nos indignaríamos à explosão. Mas fomos neutralizados, os nossos limites da tolerância perante a miséria foram movidos, gradualmente. Fomos delicadamente treinados a aceitar o que antes jamais poderíamos aceitar. Delicadamente mesmo quando à força, porque fomos confrontados com uma técnica de choque e espanto que nos impõe a miséria como facto consumado, mas crescente. E antes do choque e espanto fomos chamados a escolher os nossos próprios carrascos, entre PS e PSD. 

Mesmo os que lutam, mesmo os que se indignam, viram movidos os limites da indignação, porque não são imunes. E a sociedade estará em movimento de progresso quando a nossa indignação for mais sensível e não, como agora, se torne cada vez mais um atributo humano em contracção. 

A normalização da indignidade faz dela regra. A normalização da indignidade é o fascismo.

Quanto mais indigna é a vida mais dificilmente nos indignamos. 


Publicado por Miguel Tiago no Manifesto74.
 
RESISTIR POR UM MUNDO MELHOR