O primeiro-ministro inglês não tem dúvidas. As revoltas nas ruas das cidades inglesas são apenas «criminalidade». Resultam dum «colapso moral» e de: «Irresponsabilidade. Egoísmo. Comportamentos que ignoram as consequências dos próprios actos. […] Recompensas sem esforço. Crime sem castigo. Direitos sem responsabilidades» (CNN, 15.8.11). Alguém deveria oferecer um espelho a David Cameron. A sua caracterização assenta que nem uma luva à criminosa, mentirosa e corrupta classe dirigente do seu país, que nos últimos anos enriqueceu de forma obscena através das falcatruas bolsistas e financeiras, da guerra, dos subsídios estatais, das isenções fiscais, das privatizações e pilhagem da riqueza pública, da mentira sistemática do império mediático de Rupert Murdoch. E que agora acha que cabe ao povo britânico pagar a factura dos seus desmandos.
São seguramente condenáveis as destruições de lojas e casas nas cidades inglesas. Mas quem elogiou a incomparavelmente mais grave destruição de Tripoli, Bagdade ou Belgrado? São condenáveis as violências sobre cidadãos inocentes nas ruas inglesas. Mas no dia 8 de Agosto aviões da NATO matavam 85 civis na aldeia de Majar, a 150 km de Tripoli: 33 crianças, 32 mulheres e 20 homens (Globe and Mail, 9.8.11). Violências de gangs são inaceitáveis. Mas quem transformou os gangs narcotraficantes e assassinos do UÇK, dos mudjahedines afegãos ou dos «rebeldes» de Bengasi em «governos», entregando-lhes cidades, territórios e redutos para os seus tráficos e crimes? E o que nos contam na comunicação social sobre os distúrbios será verdade? O Estado inglês tem um extensíssimo historial de violência e mentira. Foi assim nos anos da revolta na Irlanda do Norte (com casos escandalosos como os Birmingham Six ou os Guilford Four). É assim nos nossos dias. Desde 1998 morreram 333 pessoas sob detenção policial, sem que alguma vez um polícia tenha sido condenado (Guardian, 3.12.10). Em 2005 foi assassinado a sangue frio, após perseguição policial, o jovem brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com «um árabe». Na altura a polícia mentiu. No incidente que agora despoletou os distúrbios, depois de inicialmente a polícia ter dito que o jovem Duggan morrera numa troca de tiros com a polícia, a comissão de fiscalização da polícia veio confessar que apenas a polícia disparou (Guardian, 9.8.11). Testemunhas afirmam que Duggan foi assassinado a sangue frio, depois de imobilizado pela polícia. O chefe da Polícia Metropolitana de Londres demitiu-se há poucas semanas, após o escândalo que revelou um grau de podridão assinalável no triângulo imprensa-polícia-governo de Sua Majestade. Curiosamente, o dito trio aparece agora na contra-ofensiva política, distribuindo aos sectores mais pobres da sociedade inglesa sermões de moral e ameaças de duríssima repressão policial e social. O jornalista que despoletou o escândalo apareceu morto, tal como aconteceu com David Kelly, que em 2003 denunciou à imprensa as mentiras do governo Blair sobre a guerra no Iraque. Nada de suspeito, claro.
No Reino Unido como no resto do mundo capitalista, os anos da crise foram fartos para os senhores do dinheiro. Segundo a lista elaborada pelo Sunday Times, só no último ano os mais ricos viram as suas fortunas aumentar 20% (Telegraph, 7.5.11). A manterem-se as tendências actuais, o fosso nos rendimentos será, em 2030, apenas comparável ao que existia no tempo da Rainha Vitória (Guardian, 16.5.11). Lá como cá, os lucros privados são sustentados pelas dívidas públicas e por um ataque selvagem às condições de vida de quem trabalha. Para boa parte da juventude trabalhadora britânica, o sistema apenas oferece como saída combater (e morrer) nas guerras ou nos gangs. Ironicamente, nem mesmo uma carreira na polícia é agora possível, pois os cortes do governo conservador-liberal implicam que 34 mil postos de trabalho na polícia vão desaparecer nos próximos quatro anos (Guardian, 21.7.11).
A explosão inglesa é mais um sinal de que o sistema capitalista dos nossos dias está em profunda crise. Foi quase simbólico que os distúrbios nas ruas acompanhassem os distúrbios nas bolsas e nos mercados. A classe dirigente inglesa só fala em repressão e mão dura. O capitalismo já nada mais tem para oferecer senão miséria, guerra e violência.