«Desde 1974, dias depois da Revolução dos Cravos, que o Primeiro de Maio se tornou a festa da fraternidade e da dignificação dos trabalhadores, aberta a todos os que nela queiram participar.»
As palavras de Mário Soares, no artigo publicado esta terça-feira, 5 de Maio, no DN, estão longe de fazer jus ao lema que preside ao espaço, a saber, o tempo e a memória.
Das duas uma, ou a memória de Soares está (outra vez) muito abalada ou os tempos não estão (se é que alguma vez o estiveram...) para lembrar a verdade dos factos.
O motivo da dúvida – meramente metódica, confesso – reside num «pormenor» incontornável, cujo está intimamente ligado aos degradantes incidentes que depois viriam a ocorrer na manifestação do já longínquo 1.º de Maio de 1975.
Nesse ano, Mário Soares recusou-se a participar na «festa da fraternidade», como hoje lhe chama, alegadamente por discordar que, além dos dirigentes sindicais, nela discursasse Vasco Gonçalves, então primeiro-ministro do Governo que ele próprio integrava.
A coisa podia ter ficado por aí, mas o que se passou foi completamente diferente.
Cedemos a palavra a Soares para que nos conte como foi: «Estragámos a Festa. Entrámos no estádio de roldão, em puro confronto físico, [...] abrindo caminho ao empurrão, ao soco e aos encontrões. [...] Quando lá chegámos [à tribuna] fomos impedidos de entrar por elementos da Intersindical [...]. Impossibilitados de entrar e de usar da palavra» (entrevista concedida em 1995 a Maria João Avillez, depois editada em livro Soares. Ditadura e Revolução, págs 430-431).
A versão dos factos dada em 1975 não foi esta, mas algo muito parecido com o que agora Soares escreveu no DN: «Tentaram, então, evitar a entrada no Estádio Primeiro de Maio aos dirigentes e aos militantes socialistas e impediram que Salgado Zenha e eu próprio, ambos membros do Governo de Vasco Gonçalves, depois de atravessarmos o campo entre encontrões e injúrias, tivéssemos acesso à tribuna dos discursos...»
A discrepância entre as duas versões – uma confessando a provocação e outra assumindo o papel de vítima – é por demais evidente e dispensa comentários.
Mas é certamente sintomático que Mário Soares volte ao assunto em 2009 para dizer que «não foi a primeira vez» que a «intolerância» se fez sentir no 1.º de Maio.
Não menos sintomático é ainda o facto de Soares, tendo despido a camisola do «puro confronto físico» de 75 e envergado o fato da «tolerância» dos novos tempos, não dedicar uma linha da sua escrita aos que acusam o PCP de instigar «à violência e ao ódio» por não abdicar da justa crítica, condenação e repúdio das políticas de direita impostas (também) pelos que se dizem socialistas.
Já agora, para quem tem memória curta, vale a pena lembrar que o 1.º de Maio é muito mais do que a «festa da fraternidade».
É, sobretudo, a festa que celebra a luta de todos os dias e de todos os trabalhadores contra a exploração, pela justiça social, pelo progresso, pela paz.
Uma festa como esta celebra-se na rua, na secular convicção de que as ruas são do povo; por isso ninguém está livre de uma ou outra provocação, como às vezes se comprova.