sábado, 3 de janeiro de 2009

3 de Janeiro de 1960

O Forte de Peniche era a prisão de mais alta segurança do fascismo.

Dentro da fortaleza, o Governo mandara construir um pavilhão de tipo penitenciário, especialmente seguro e resguardado, submetido a uma vigilância enorme.

Nesse pavilhão o regime era mais severo, os detidos coagidos a uma verdadeira vida de isolamento, cada um encerrado na sua cela, sem se poderem falar senão durante o recreio. Até as portas das celas eram blindadas e fechadas por uns complicadíssimos ferrolhos automáticos.

De tal maneira inspirava confiança que Álvaro Cunhal, até aí encarcerado na Penitenciária, tanto para o isolarem dos outros presos como para evitarem qualquer possibilidade de fuga, foi posto nesse edifício.

Aí foram colocados, além de Álvaro Cunhal, entre outros, alguns dos presos mais responsáveis e com mais longas penas a cumprir.

Poderia parecer incrível que nas condições em que se encontravam aqueles homens, encerrados no interior de uma fortaleza amuralhada, cercados pela apertada rede de sentinelas da GNR no interior e no exterior, espiados constantemente pelos ferozes guardas prisionais, pensassem em fugir.

Mas pensaram. Eram homens decididos, dispostos a arriscar a vida para a dedicarem à luta pela libertação do povo português.

Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Francisco Miguel, Guilherme de Carvalho, Pedro Soares, Carlos Costa, Jaime Serra, Rogério de Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues (os «10 de Peniche», como ficaram conhecidos) dirigentes e membros destacados do PCP, contavam já um total de 77 anos de prisão cumprida.

Os governantes fascistas pretendiam mantê-los indefinidamente presos para além das condenações impostas pelo tribunal fascista, por meio de prorrogações sucessivas das "medidas de segurança", como vinha fazendo com Álvaro Cunhal e Francisco Miguel, que há muito haviam terminado as penas a que tinham sido condenados.

A firme decisão de reconquistarem a liberdade para reocuparem o seu lugar na luta; o estudo lúcido de todos os obstáculos que se lhes antepunham; a coragem que se impunha para arrostar com os inúmeros riscos que os separavam da liberdade; e principalmente, a unida coesão que fez daqueles homens as conscientes peças de uma engrenagem bem montada, eram os factores internos com que contavam para o êxito da evasão.

O auxílio da direcção do PCP, com a preparação dos aspectos exteriores – transportes, afastamento rápido e em segurança do local, estudo do itinerário, alojamentos, etc., etc., foi um factor imprescindível para a fuga. O seu êxito deveu-se ainda a uma cuidadosa e disciplinada organização e coordenação do interior com o exterior.

O antifascismo do povo português, o seu apoio e admiração pelos que lutavam contra a ditadura desempenharam um papel igualmente importante nesta fuga colectiva.

No dia 3 de Janeiro de 1960 tudo estava a postos. A fuga foi uma série de actos coordenados, em que cada um tinha o seu lugar e o seu papel. O guarda prisional, um dos carcereiros mais ferozes e odiosos, foi dominado e adormecido com um narcótico, com especiais cuidados para a sua vida não correr o menor risco. Os preparativos prévios (lençóis rasgados e atados, etc.) estavam feitos, e, seguindo o roteiro previsto, puseram-se em fuga.

Em fila indiana e a espaços regulares, confundindo-se com a sombra das ameias, quase rastejavam para não serem vistos pelas sentinelas. Em silêncio, saltaram um pano de muralha com a altura de mais de um andar; desceram, por uma corda de lençóis, do cimo da Fortaleza ao fosso e deste treparam para o muro exterior, alcançando a rua. A sentinela do terraço do 3º piso, donde os presos fugiram, José Jorge Alves, foi o auxiliar preponderante dos evadidos, proporcionou-lhes a fuga e fugiu com eles.

Alguns transeuntes observavam, paralisados de espanto, a estranha cena. Mas nem uma boca se abriu para avisar os guardas. Em Peniche, o povo sabia que a fortaleza era uma cadeia política e que os encarcerados perderam a liberdade por lutar contra a ditadura. Em Portugal o povo tinha respeito e admiração pelos presos políticos.

Por isso, quando a notícia da fuga se espalhou, foi enorme o regozijo popular, em muitos sítios houve verdadeiras festas, em que nem faltou o lançamento de foguetes.

Por seu lado o Governo reagiu com uma mobilizarão espectacular do aparelho repressivo em todo o País, numa tentativa desesperada de recapturar os evadidos.

Desde o assalto a casas de democratas ou de simples suspeitos, revolvendo e procurando em toda a parte, até às barragens nas estradas com a identificação de todos os ocupantes dos meios de locomoção, tudo foi tentado com esse objectivo.

Pouco depois da fuga, o capitão Neves Graça foi demitido do cargo de director da PIDE e substituído pelo tenente-coronel Homero de Matos, que intensificou ainda mais as medidas repressivas, de norte a sul do País.

Encontrar os fugitivos, principalmente Álvaro Cunhal, a quem o fascismo tinha ódio de morte, e dificultar o desenvolvimento da luta das massas trabalhadoras e de todas as forças anti-salazaristas, eram os objectivos deste recrudescimento da repressão.

O governo salazarista avaliara bem a importância política da fuga, o prestígio e a confiança popular de que gozava um dirigente como Álvaro Cunhal. A recuperação para a luta destes heróicos portugueses veio permitir o reforço da luta das classes trabalhadoras e do povo em geral e o fortalecimento da unidade de acção contra o regime salazarista.

As consequências da Fuga de Peniche - quer no reforço interventivo, ideológico e político do PCP, quer na subsequente intensificação da luta antifascista - foram imediatas.

A Fuga só se tornara possível graças a um planeamento extremamente rigoroso e a uma coordenação perfeita entre as organizações do PCP no interior e no exterior do Forte.
No interior, organizaram e dirigiram a Fuga, Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes e Jaime Serra.
No exterior, intervieram Pires Jorge, Dias Lourenço, Octávio Pato e o actor e militante comunista Rogério Paulo.

Nota: O texto foi adaptado de diversos sítios. De salientar que uma parte importante do texto constitui a sexta parte do capítulo "Os antros da morte lenta" da obra A resistência em Portugal, escrita em 1960-1961 por José Dias Coelho, com a colaboração de Margarida Tengarrinha.
José Dias Coelho viria a ser assassinado por agentes da PIDE em 19 de Dezembro de 1961.
 
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