quarta-feira, 16 de junho de 2010

Reflexões lentas - necessidades e luxos

Na tarefa de sábado passado, em Évora, à conversa com os camaradas, durante a exposição tratei da diferença entre necessidades e luxos, inevitavelmente pela rama e com a intenção de abrir pistas de reflexão colectiva, ali e como “trabalho para casa”.

É, como é de uso dizer-se, um tema que há muito me (pre)ocupa, e sobre ele há largo tempo escrevo. Se tivesse dúvidas sobre isso, a ocasional descoberta de um caderno editado pelo Instituto Luso-Fármaco, SARL, para o I Congresso Nacional da Indústria Farmacêutica, prova-o ao incluir «um “exercício” sobre o mercado farmacêutico» em que, em 1968, escrevia:

«(...) Poderíamos, aqui, enveredar por um caminho em que se discutisse o problema das elastecidades, e a partir de que nível de rendimento é que o produto farmacêutico se transforma de luxo (elastecidade rendimento superior a 1) em necessidade (elastecidade rendimento inferior a 1) (...)».

Notícias destes dias, em que uma discutível amostragem leva a dizer que o “português médio” prefere deixar de comprar alimentos e medicamentos a reduzir a sua despesa em electrodomésticos de diversão e informação (?) e em automóveis, levanta a mesma questão em termos diferentes e bastante interessantes. Quereria isso dizer que o tal “português médio” (se existisse…) sentia (tenha criado o hábito e a dependência cultural de sentir) o(s) carro(s) e o telemóvel e a ligação a canais de televisão e à net como necessidades (de difícil compressibilidade de consumo), e os alimentos e os medicamentos como luxos (de fácil -ou de mais fácil - compressibilidade de consumo). Economicamente falando...

Sinais dos tempos! Da importância da aparência (efeito demonstração) e de uma ausência de consciência das reais necessidades.

E se em 1968 já este tema me (pre)ocupava, estando então nos difíceis primórdios do estudo tão aprofundado quanto possível (e sempre incompleto) de O Capital, agora o reencontro (que deveria ser quotidiano) com estas esclarecedoras páginas na edição portuguesa (edições avante!)do tomo V, que introduz a consideração de dois sectores, o I, de produção de meios de produção, e o II, de produção de meios de consumo e, neste sector, faz a divisão entre meios de consumo necessários e meios de consumo “de luxo”, não resistindo à citação que também comprova a riqueza da abordagem marxista:

«Para a nossa finalidade (análise da conversão no interior do sector II no subsector dos meios de consumo que entram no consumo da classe operária), podemos reunir todo este subsector na rubrica: meios de consumo necessários, em que é totalmente indiferente se um produto real, por exemplo, como o tabaco é, do ponto de vista fisiológico, um meio de consumo necessário ou não; basta que, em conformidade com o hábito, [ele seja] um tal [meio de consumo necessário].»

Vou continuar nestas reflexões, até porque, no final dos nossos trabalhos formais, à conversa com um camarada ele levantou problemas muito pertinentes que trouxe como meu “trabalho para casa”.

Estes temas são inesgotáveis…

No regresso a casa, depois da estimulante troca de impressões com um camarada, enviei-lhe um mail (mais ou menos) nestes termos:

1. Quando falo de necessidades e de luxo, citando Marx, e sublinho que as necessidades são o que o ser humano sente como tal, e que a divisão entre uma e outra categoria não obedece a um padrão ou quadro moral, isso não significa que se aceite sem objecções (e sem luta!) o impacto da publicidade, do consumismo, e a criação de necessidades artificiais.

2. De modo nenhum. Uma coisa é o que são as condições que criam as necessidades, outra é o tomá-las (ter o hábito de as sentir…) como tal. Há dois lados da questão. E nisso entra a consciência, e a consciência da necessidade.

3. Aliás, uma definição marxista de liberdade é esta ser a consciência da necessidade.

4. Numa sociedade como aquela por que lutamos, e estamos convictos que virá a ser, haverá consciência da necessidade; não seremos – seres humanos – presa de interesses que nos criam necessidades artificiais e que, por as sentirmos como necessidades nossas, passam a ser necessidades e não luxos.

5. Por isso mesmo, não se extrapolem as actuais condições objectivas e o ambiente cultural envolvente, em que o individual prevalece, para um futuro em que serão outras as condições objectivas, com a abundância generalizada por não apropriação egoísta, e outra a envolvência cultural, em que o colectivo prevalecerá sobre (e corrigirá) o individual.

6. Mas não tenhamos ilusões, nessa organização social não haverá unanimidades, nem ausência de conflitualidade, nem anulação de egoísmos, isto é, não será tudo e todos perfeito (isso seria a utopia…), prevalecerá, sim, o contrário do que hoje prevalece e domina e esmaga.

7. E se lutamos para que, numa primeira etapa (histórica, quando?) teremos a regra de a cada um segundo o seu contributo para o colectivo, na passagem para a etapa (histórica, quando?) de a cada um segundo as suas necessidades, isso pressupõe que haja a consciência da necessidade em cada um, isto é, que cada um é livre… mas o colectivo não lhe permite ser libertino…
Aprofundemos um pouco o então dito. com o que passa nos nossos quotidianos. Que não começaram ontem… nem amanhã acabarão.

É um automóvel um “bem de luxo”?

Para alguns, será. Porque alguns procuram um carro de “colecção”, para “demonstração”, o último modelo daquela marca”.

Para outros, talvez seja. Porque essoutros têm o carro, também pelo menos..., para lazer, para “dar umas voltas”.

Para muitos, é uma evidente necessidade. Ou porque é o seu instrumento de trabalho (um taxista), ou porque é o meio que tem para se deslocar para o local de trabalho.

E sempre foi assim?

Claro que não.

Até já houve tempos, por incrível que pareça, em que o automóvel não foi nada. Nem existia… E não foi há tantas décadas como isso.

Depois, houve uma altura em que até se dizia que o automóvel era um "sinal exterior de riqueza". Ou seja, era, claramente, um luxo.

Hoje, um casal desse estrato social, para quem o ter um automóvel já foi considerado por outros como esse tal "sinal exterior de riqueza", tem dois automóveis, e não são considerados nenhum sinal exterior de riqueza – nem pelos menos que assim viam o carrinho de há, sei lá…, 20/30 anos –, pois organizaram a sua vida de modo que é o meio de se deslocarem, cada um para o seu trabalho, ou para outras necessidades como ir às compras ou, até, um dar um salto à praia enquanto o outro tem obrigações familiares do seu lado.

E sempre será assim, como hoje é?

Claro que não.

Quando, e se, houver um serviço de transportes públicos eficaz, criado à medida de um viver futuro, quando o ambiente cultural deixar de ser o de cada um para si e do salve-se quem puder, o automóvel (os automóveis) podem voltar a ser um “bem de luxo” e não uma necessidade.

Sérgio Ribeiro no Anónimo Séc. XXI.
 
RESISTIR POR UM MUNDO MELHOR